quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Eulália

Eu vejo os pés escuros da porta do quarto indicando um caminho de mistério. Tão somente como o mistério de dez anos atrás. Naquela época, quando eu embelezava as minhas noites com escrituras sobre os homens da vizinhança e o mau olhado das lavadeiras para mim, Fausto cuidava deliciosamente das plantas de nossa casa. E, além daquele homem modesto e delicado, morava Eulália, minha companheira nos bordados.

Eulália usava sempre dois tipos de vestidos bordados: um branco com listrinhas azul-claro, e um de cor rosa clara. Usava-os pela manhã e tarde, encantando os clientes de Fausto, meu marido. Ela também era de uma mente escondida e de família pobre. Tecia pensamentos ligados à loucura. Penso eu: por que esses pensamentos nessa hora noturna? Por que Eulália me confronta tanto dentro de casa? Por que, por mais inexplicável que seja, ela sente que me deve algo? ...

Tínhamos muitas plantas verdes e alguns baús com vinhos para vender. Faltava cor em nossa casa! Faltava uma flor no jardim, uma cor para mim. E a inspiração para além do “entre nous”. Fausto aguava-as todos os fins de tarde. Calculadamente, vendia as mais belas, as mais exóticas e femininas. Quando chegava a quinta-feira, ele arrastava Eulália para o centro.

Cavalgavam juntos em cavalos namorados pela estrada, e lastimavam-me de longe para com as outras pessoas. Queriam plantas! Ela era o “affaire” à minha frente.

Eu percebia suas mentiras. Percebia o olhar assustador quanto as minhas perguntas assassinas. Ligeiramente, eu tocava o seio branco daquela mulher “vulgaire”, e sentia o coração escravo acelerar de medo com as mentiras. Acariciava-a, não reclamava. Insistia em devorá-la com o meu olhar de dama da noite. O meu marido, descansava o corpo no andar de cima da casa ao lado das orquídeas e samambaias. O livro que o dominava, ficava a dois metros da cama. O lençol bordado de Eulália cobria-o do frio invernal.

Eu vejo os pés escuros da porta do quarto indicando um caminho de mistério. Vejo a fechadura rodando em sentido de abertura para mostrar quem me espera. Abro e vejo Eulália. Ela dança com seu vestido branco, concorda com o medo em meu rosto. Admiro sua beleza pós morte. Sua loucura me deixa mais louca ainda. Rasgo os livros antigos de Fausto. Não como, não durmo, nem conheço quem comprou a fazenda vizinha ou quem se casou na última semana em Santa Velha. Ela caminha com os sapatinhos de bordado pela casa, e senta-se na cadeira mais próxima para eu olhar o rosto perfurado.

Como muitos casos que aconteceram na cidade em anos passados, este não poderia ser diferente. Os clientes antigos temiam-me no começo das investigações. As mulheres lavadeiras e tolas como só elas são, jogavam pragas quando eu andava a cavalo perto do rio. Os maus espíritos importunavam-me diariamente. Agora, anos após a morte, eles vagueiam juntos dentro da casa, e para onde olho, apontam-me acusações fortificadas nos ditos daquelas.

Eulália e Fausto pensam onde está esse livro. Acham que vão dormir.

... O pensamento ligado ao meu papel, vive uma vida já morta. Sem água, sem fala. Olha com desprezo e intimidação.

6 comentários:

Cleyton Cabral disse...

Putz, que denso. =D

Inês disse...

Nu!
É um prazer imenso conhecer este espaço. Gostei das suas palavras!
Quanto a este post...
Nu!

Um abraço da nova companheira que vagarolando por aí encontrou você!

Arthur Dantas disse...

Quem disse que poesia precisa de verso e rima(se é que algum louco já o fez) revirou-se na cova no momento em que você vomitou estas palavras. Parabéns.

Unknown disse...

Seus textos fortes sempre me surpreendem.
abraço grande.

Arthur Dantas disse...

muito obrigado, mas estou começando por essa nova "linha", mas pretendo continuar nela. Ficarei esperando as outras partes do texto então.

Chellot disse...

Intrincado, um tanto sobrenatural, obscuro e ainda assim com um toque de suavidade. Gostei.
Bjs.