terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Eulália II (o homem e o desejo)

Na profundeza da compunção, ela se absterge em orações antes de entregar-se ao sono. Não ouço suas lamentações, se é que ela as tem, nem muito menos vejo a luz das velas brancas acesas. A luz escondida entre as nuvens, aguarda o grito astucioso dos insetos e espíritos ao redor da casa. As folhas verdes dos vasos vermelhos mexem-se a todo o instante.

Um cachorro late longe. Enquanto Fausto repousa na cama, levanto-me e sigo até à janela, com cortinas de cor amarelada como a da lã de Eulália. Abro-as, e vejo que no horizonte do terreno, na beirada, um cachorro fita atento a nossa casa. Ele é preto, grande, e a luz do candeio reflete nos olhos do cachorro, quiçá lobo. Remiro-me naquela direção. Os meus olhos vêem um homem lisonjeando o preto. Esse veste-se com uma calça branca e camisa também branca. Eis um mistério...

As donas de casa, as lavadeiras de Santa Velha, mulheres que ainda são moças, da mesma forma que Eulália, falam dessa cena. Dizem que o homem é a imagem do inimigo. Algumas chamam-o de “mafarrico”. Outras, aquelas que disseram ter sido abusadas sexualmente, dão o nome de “pé-de-peia”. Muitas histórias surgem no decorrer do ano sobre o beiçudo. Agora sei da existência dele. Maria de Zé Ôião veio uma vez aqui em casa e revelou-me coisas de quimera. Eu segurava o terço e ela dizia: “Precisava ver, sinhá. Homem era feio feito o cão. Digo-te, de longe! Mas ele me chamou e fui até lá. Tinha um lobo do lado e segurava um livro. Querendo me enfeitiçar com a bíblia, cheguei perto. Mudei minha opinião na mesma hora! O homem era bonito, sinhá. Abriu os três primeiros botões da camisa e me chamou para tocá-lo. Tinha poucos pelos no peito e sua pele estava quente... Entreguei-me a ele. Riu-se com a minha cara de santa de rapariga. E o... sim... o falo dele estava enrijecido. Sinhá! Era um homem do pecado.”

Era o diabo! O diabo me olhava e eu sentia um fogo no meu corpo. Não, não! Ele não me olhava. O olhar com falsidade olhava para outra janela. A janela do quarto de Eulália. A falência dos meus pensamentos é seguida pelo sobressalto da visão ao ver a minha companheira nos bordados caminhar-se para o mafarrico. Minhas unhas agatanhavam por cima do meu camisote. Sentia-me como uma mulher desgrenhada e apetecível. Quero usar o meu corpo, as minhas carnes com aquele homem. Mas ela rouba-o de mim.

Tenho, mais uma vez, a incumbência de despi-la na frente de Fausto. Mostrar-lhe quem é Eulália. Quem é essa mulher que deturpa a nossa vida, a nossa casa. Porém, tenho-a em meus bordados e nas minhas lamentações quanto a Fausto. Abro o meu coração para ela, mesmo sabendo de suas traições.

Quero o verde... Quero estuprá-la por completo... Quero compreender os meus desejos cataclísmicos.

Olhe, olhe: sempre existe uma luz ou sombra estranha no seu quintal. Na varanda de sua casa ou na janela do seu quarto. Veja-o AGORA!
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